A VIOLÊNCIA

(In "Portugal Antigo e Moderno", de Pinho Leal, Vol 11)

Esta Vila é muito hospitaleira e obsequiadora para com os estranhos, mas quem fixar nela domicílio necessita de viver com muita prudência e muito critério para se livrar de trabalhos, porque, desde tempos remotos, esteve sempre dividida em partidos exaltados que há mais leve provocação se não poupam a hostilidades de toda a ordem, vinganças, perseguições, pancadas, facadas, tiros, incêndios e mortes! E, como a Vila é compacta e muito populosa, e por vezes tem estado dividida em dois bandos de fanáticos políticos armados, nas suas próprias ruas se têm ferido grandes desordens, batalhas sangrentas que a têm coberto de sangue, de cinzas e de vergonhas!

Sem evocarmos reminiscências muito longínquas, poderíamos citar grandes excessos, incêndios   mortes, praticados ainda neste século por ocasião das lutas civis, nomeadamente durante a revolução da Junta do Porto (1846 a 1847) que obrigaram algumas das principais famílias desta Vila a expatriar-se e abandoná-la até, hoje, fixando a sua residência no Porto, Lisboa, Moncorvo, Pinhel e noutras localidades, para salvarem a vida e o resto dos seus haveres, com o que muito sofreu esta povoação.

 

Algumas das suas primeiras casas foram reduzidas a cinzas em 1847 com toda a sua mobília, géneros e valores importantes, e outras se acham ainda desertas, tais são as da numerosa e abastada família Campos, do Barão de Vila Nova de Foz Côa. Em uma delas, na rua de S. Miguel, talvez ainda hoje o 1º edifício particular da Vila, se acha montado um hotel!...

Nos excessos praticados durante as últimas guerras civis desempenharam o primeiro papel António Joaquim Marçal e Manuel Marçal, irmãos do general de brigada João António Marçal.

Capitaneando uma numerosa guerrilha ou antes quadrilha de ladrões e assassinos, mataram e roubaram ou mandaram matar e roubar muitas pessoas e incendiaram muitas casas nesta Vila e fora dela.

Só nas freguesias de S. Martinho de Mouros e de S. Pedro de Paus, concelho de Rezende, saquearam a povoação toda e incendiaram treze das primeiras casas, (1) mas por seu turno lhes incendiaram também as deles e ambos foram barbaramente mortos a tiro, como feras (2). “Talis vita—finis ita!... “

Os Marçais de Foz Côa, fizeram pendant (sic) com os Brandões de Midões, e foram como eles o açoute e terror da Beira muitos anos (3)

(1) (Vd. Paus, vol. 6.° pag. 509. col. 2ª e seg.) Pessoa de todo o crédito nos asseverou que a tal guerrilha ou quadrilha dos Marçais, só em um dia de marcha, desde Vila Nova de Foz Côa até Ranhados, freguesia distante de Foz Côa cerca de 20 quilómetros para S. O. assassinou barbaramente dezanove paisanos, sendo o último um pobre pastor que encontraram junto de Ranhados!

(2) António Joaquim Marçal nasceu n'esta Vila em 1803 e foi barbaramente assassinado em 11 de janeiro de 1801 no sítio do Farsão, freguesia da Lousa, concelho de Moncorvo.

Manuel António Marçal nasceu em 1819 e foi assassinado pelo seu parente, Rodrigo Balsemão, no dia 18 de maio de 1861, na Venda do Vale, freguesia de Mouronho, concelho de Tábua.

0 general, irmão dos antecedentes, João António Marçal, nasceu em 1808 e faleceu a 27 de fevereiro de 1878, em Angra do Heroísmo.

(3) V. Midões, Oliveira do Hospital, Tábua, Várzea de Meruje, Várzea da Candosa, Vide, freguesia do concelho de Seia, e La Vendetta ou O Saldo de Contas, por Arsénio de Chatenay, pseudónimo de António da Cunha, de Várzea de Trevões.

Para se formar ideia do que esta pobre Vila tem sofrido com as dissensões e perseguições políticas e religiosas não necessitamos de remontar-nos á cruel, impolítica e bárbara expulsão dos judeus, ordenada por D. Manuel, nem á ominosa ocupação Filipina.

Basta que nos circunscrevamos a este século e recordemos alguns factos. “Horresco refferens!”

1.° - Em 1808 os cristãos velhos, fanatizados e dirigidos pelo abade José Maria Leite, caíram em massa sobre os cristãos novos, apodados de jacobinos ou parciais dos franceses, espancaram e trucidaram barbaramente a muitos, homens e mulheres, velhos e crianças e lhes saquearam e arrasaram as casas. Por seu turno os cristãos velhos, autores do massacre, foram depois severamente punidos e massacrados pela justiça. Muitos entulharam as cadeias e nelas pereceram; outros se homiziaram e passaram os maiores trabalhos escondidos pelas brenhas e montes; outros foram degradados para a África; outros jazeram nas prisões até 1820 e nessa data foram amnistiados por influência do generoso liberal e patriota Joaquim Ferreira Soares de Moura, de quem logo falaremos.

2.°- Em 1828 e nos anos seguintes os partidários do sr. D. Miguel perseguiram cruelmente os liberais; culparam e prenderam nada menos de 102 homens e mulheres e houve por essa ocasião muitos espancamentos, ferimentos e mortes, confiscações de bens e insultos e excessos de toda a ordem.

3.°- Em 1834 e nos anos seguintes, por seu turno os liberais exerceram cruel vindicta sobre os realistas, havendo por essa ocasião também muitos espancamentos, ferimentos, incêndios e mortes, tornando-se tristemente célebre entre os perseguidores dos realistas João António Tronfe, por alcunha o Parola, que fez, ou pelo menos se jactava de haver feito, vinte e oito assassinatos?!. . Morreu miseravelmente.

4.°- Em 1837 a 1840 os liberais em guerra uns contra os outros praticaram também muitos excessos e mortes. Por essa ocasião as forças do conde do Bomfim saquearam pela 1ª a vez a casa de António Marçal, uma das mais importantes da Vila.

5.° - Em 1846 e 1847 reapareceram as mesmas lutas entre os liberais. Dividiu-se a Vila em dois partidos e formaram-se e armaram-se dois batalhões, um cartista, comandado por António Marçal, que abraçou a causa da rainha, a sra. D. Maria II, outro setembrista ou patuleia, que seguia a causa popular, ou da junta do Porto. Em 24 de dezembro de 1846 as forças do Marçal entrando nesta Vila saquearem e destruíram tudo quanto encontraram nas casas dos seus adversários, (1) tendo estes respeitado sempre as dos cartistas; mas não se fizeram esperar as represálias.

No primeiro ensejo as forças da junta por seu turno saquearem as dos cartistas e incendiaram as de Manuel Marçal e de António Marçal, que perdeu no incêndio somas importantes, pois além da mobília ficaram reduzidos a cinzas uns baús que havia escondido em um falso, cheios de pratas e de outras preciosidades.

Também por essa ocasião lhes tomaram muito gado e queimaram todos os papéis da câmara, municipal, da administração do concelho e de outras repartições publicas.

6.° - Em 1850 até os elementos se conspiraram contra esta Vila, pois durante meses a “cholera morbus” a devastou cruelmente, fazendo centenares de vítimas!. .

7.°- Em 1863, havendo o escrivão da fazenda Vicente Augusto de Araújo Camisão, (2) elevado escandalosamente o rendimento colectável das matrizes, o povo se levantou em massa e reduziu a cinzas tudo quanto encontrou na repartição da fazenda e na recebedoria do concelho, seguindo-se a punição, que foi severa! . .

 8.°—Em 1876 manifestaram-se a deshoras da noite vários incêndios em propriedades urbanas, atribuídos a vinganças partidárias provenientes de umas eleições muito renhidas. 

(1) Entre as casas que saquearam e destruíram merecem especial menção três formosos palacetes dos srs. Joaquim de Campos Henriques, José de, Campos Henriques e Manuel de Campos Henriques. Estes três cavalheiros tiveram de mudar a sua residência, o 1.° para a cidade do Porto, onde faleceu, os dois últimos para a cidade de Pinhel, onde faleceram também.

(2) Faleceu em 1884 na Guarda, sendo ali delegado do tesouro


Autorizada a utilização das imagens desde que indicada a sua proveniência.

Faça os seus comentários, sugestões e críticas.

Ajude-nos a melhorar

Comments: 0